A VIDA SECRETA DAS MÃES
UNIVERSO FEMININO E SEXUALIDADE...
E eles chegaram: os dois risquinhos no palitinho, o positivo no exame de sangue. E foi feito ultrassom: é, ela está mesmo grávida. Tem uma micro pessoinha no seu ventre. Pronto. Tudo está diferente! Mesmo?
Todas as perguntas agora são sobre a gravidez. Toda conversa agora é sobre o bebê. Já mexeu? Já sabe o sexo? Já começou o enxoval? Já comprou o carrinho? Escolheu os padrinhos? Está enjoando muito? Vai nascer de parto ou cesária? “Ai sua louca” (para qualquer resposta a esta pergunta). “Ai que barriga linda!”
Não, não vou falar sobre os milhões de palpites que uma mulher recebe a partir dos dois risquinhos. Também não vou falar sobre sermos tomadas como patrimônio público a partir dali. Vou falar sobre a mulher. A mulher que gesta. A mulher que pari. A mulher que nutre. A mulher que cria. Vou falar da mulher – mãe, este indivíduo social que desaparece quando aparecem as duas listrinhas.
Por trás (ou na frente, ou ao lado, tudo junto e misturado) à esta pessoa que prepara outra pessoa dentro de si, existe uma mulher. Existe um indivíduo. Este indivíduo não some quando o bebê chega. Ele permanece ali. Ele muda. Mas permanece ali.
Vivemos em uma sociedade patriarcal que endeusa mulheres gestantes e exclui mulheres-mães.
Mãe não é bem vista no bar.
Mãe não é bem vista trabalhando. Mas também não é bem vista em casa, dedicada 100% para sua criança.
Mãe não é bem vista andando na rua. Mas também não é bem vista isolada.
Mãe não pode comer de tudo quando gesta, nem quando amamenta. Também não pode deixar de comer. Mãe não pode engordar. Mas também não pode ficar muito magra. O colo precisa ser fofo, mas não fofo demais.
Diz-se que quando nasce um bebê, morre uma mulher e nasce outra. Esta metáfora é real. Simbólica e real. E isso acontece a cada criança que esta mulher trouxer ao mundo. Mas ela ainda está lá. A mulher. Ela está lá.
Esta mulher segue tendo desejos, vontades, sonhos. Esta mulher segue desejante e desejada. Esta mulher tem uma vida privada. Que acontece com e para além dos filhos.
Nesta vida privada das mães existe o sonho por um trabalho digno e bem remunerado, que possibilite a ela a liberdade de gerenciar sua própria história, sem amarras e medos.
Nesta vida privada das mães existe a leitura, o autoconhecimento, existe a descoberta por si mesma. Nesta vida privada das mães existe o “depois que os filhos crescerem”. Nesta vida privada existe a amizade, o vínculo consigo mesma e seus afetos, existe a fome, a preguiça, o tédio, a alegria, o movimento. Na vida privada existe o tesão.
Mães transam (pausa para silêncio do choque social). Me soa absurdo que ainda hoje, em pleno 2020, a gente precise buscar mecanismos de naturalizar a sexualidade materna. Sim, mães transam. Fazem sexo. E querem sexo.
Segundo o discurso patriarcal e o machista, mulheres desejam menos sexo. Dizem eles também que mulher-mãe nem pensa muito sobre o assunto. E não está totalmente errado. Porém está longe de estar certo.
Durante meus 10 anos como mãe e seis anos atuando como doula e, por conseguinte, abordando, conversando e acolhendo mães e suas histórias, pude perceber que o que afasta as mulheres-mães do desejo sexual, da libido, do tesão, não são as crianças, nem o trabalho invisível (sim, também, mas não somente), nem tampouco a parca divisão de tarefas domésticas que prevalece nos lares brasileiros. O que afasta as mulheres-mães de sua sexualidade saudável e sagrada, cheia de prazeres e delícias, é a anulação da sua própria personalidade em detrimento do lugar social ocupado a partir da gestação.
Abandonar seus sonhos, desejos, caminhos, história e ocupar o lugar materno é uma jornada comum às mulheres brasileiras. Mães vivem isoladas em casa. Cada uma na sua casa, conversando apenas por redes sociais. Nossos companheiros ou companheiras mantém suas rotinas, seus trabalhos, seus encontros, seus exercícios normalmente, enquanto aquela que gesta, nutre e cria está retirada da comunidade. A comunidade da mulher-mãe se resume à amigas gestantes, mães da escolinha e do parquinho e aquelas que têm rotinas semelhantes de trabalho doméstico e de trabalho “formal”.
Na vida privada das mães, ao fim do dia vem a pergunta: o que fiz por mim hoje? E privilegiada aquela que pode tomar um banho sem pensar na organização da rotina do dia seguinte.
A ausência de liberdade para pensar, sentir, falar, vibrar, criar, estar e ser apenas uma pessoa é ceifadora da libido, sexual e não-sexual. É missão impossível estar disponível energética, física e mentalmente para o prazer quando praticamente todas as atividades energéticas, físicas e mentais da mulher estão voltadas à outras pessoas durante todo o dia, seguido por semanas, meses e muitas vezes, anos de repetição e anulação.
Quando uma mulher-mãe decide cuidar de si, olhar por si e viver em si, ela cria um desequilíbrio social no seu microuniverso. A sociedade não costuma entender, acolher e respeitar mulheres que optam por serem quem são em algum momento desta jornada. Então inicia-se outra busca: como ser protagonista da minha vida?
Assumir o protagonismo da própria vida, história e desejos é saber-se quem se é, experimentar olhar o mundo com queixos erguidos e bancar suas escolhas. É aceitar que talvez em algum lugar, em alguns grupos, este movimento vai ser rechaçado, mas em outros vai ser valorizado e é ali que se deve estar: onde ser e estar é confortável.
Ser protagonista de si mesma é entender que sim, mulheres tem filhos, mas estes não a pertencem nem ditam quem as mulheres são. Ser mãe é uma parte do feminino, mas não é o todo. Mulheres são também filhas, amigas, companheiras. Mulheres são só mulheres. E como é bom!
Uma mulher protagonista ainda incomoda.
Nosso desejo como mulher é que não incomode mais por tanto tempo. Nosso desejo é que toda mulher que se vê, se acolhe e sabe o que deseja possa ser valorizada e honrada. Nosso desejo é que todas as mulheres possam ser protagonistas de si mesmas.
Nosso desejo é que a vida privada das mães não precise ser privada. Nosso desejo é que a vida privada das mães possa ser pública e verdadeira. Acolhida e entendida. Vivida e sentida. Por todas as mulheres mães. Aí sim, deixaremos a falácia de que mulheres e mulheres-mães não gostam de sexo e não sentem prazer. Porque tendo uma vida plena e com espaço para exercer e viver seus desejos, o sexo será apenas mais um deles.

